sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Pela última vez, Tarsila

Pela última vez, Tarsila! Engano, nunca será possível uma última vez, Tarsila tornara-se sinônimo da Arte Brasileira, tal a importância da mineira para o desenvolvimento da identidade nacional tupiniquim, tal as célebres polêmicas envolvidas, tal a autoria da obra brasileira mais valiosa em termos mercadológicos.

Destaque máximo na Pinacoteca do Estado até 16 de março, “Tarsila Viajante” comemora os 80 anos de “Abaporu”, recorde de arrecadação por uma obra nacional em um leilão, revelando a cronologia exata das fases modernistas e do mito Tarsila do Amaral.

A primeira fase de destaque da artista é denominada “Pau-Brasil”. Obras como “São Paulo (Gazo)” (1924); “Carnaval em Madureira” (1924) “Paisagem com touro” (1925); “O mamoeiro” (1925); “A Feira” (1925), revelam o resgate da identidade nacional, da brasilidade, de uma cultura exclusiva daqui, cores caipiras, hábitos locais. Tarsila é a primeira a representar nossas formas com um traço específico. Não à toa, Tarsila e a geração de 22 é considerada o parto da arte brasileira, o rompimento com o academismo para a construção do “nosso”. Aqui, aparece a primeira polêmica, é evidente que Tarsila e companhia foram únicos na retratação do Brasil como percebiam (e não como era, vale lembrar que Tarsila e muitos outros faziam parte da Aristocracia Rural, vigente na época). Mas é inegável que ainda que se propusessem a uma arte gerada no útero do Trópico de Capricórnio, claramente, sua mãe de leite foram as tendências européias, uma vez que, como de costume, todos os artistas brasileiros de destaque, naquela época, passaram temporadas de estudos na Europa onde, aprimoraram técnicas e descobriram tendências modernas. Assim, o modernismo brasileiro não foi a original descoberta de uma cultura nacional, mas sim a adequação da identidade nacional a tendências modernas européias. Essa constatação não diminui a contribuição desse movimento para a formação nacional, se não primávamos pela autoria, certamente, podíamos nos vangloriar de pela primeira vez, relatar nossas formas, matizes e hábitos, como aparentemente pareciam ser.

A segunda fase de Tarsila é o grande marco da artista como autora e da arte brasileira como forma. A fase “Antropofágica”, fecundada através do presente “Abaporu” para Oswald de Andrade, seu marido até então, descarta o que no Pau-Brasil consistia em originalidade e afirma conceitualmente o que propus no parágrafo acima. “A Negra” (1923); “Abaporu” (1928) e “Antropofagia” (1929) formam a tríade da arte de Tarsila, deformação das formas, cores brasileiras, e surrealismo tangente. A antropofagia propunha a “deglutinação” da cultura européia em algo brasileiro, não negava tendências anteriores para formar as nossas, mas com maturidade assumia que toda cultura é valiosa e pode ser transformada a fim de moldar-se a uma identidade própria. Enfim, assumimos nossas influências e alcançávamos o expoente máximo de nossa arte. Nessa fase Tarsila, “surrealista” se assim podemos rotulá-la, não só representou nossas formas, mas também explorou o imaginário e o onírico em telas como “A Lua” (1928) “Sono” (1928); “O Touro (Boi na Floresta)” (1928); O Lago (1928).

Depois do auge antropofágico, há o declínio evidenciado em sua fase social. De novo companheiro, o socialista Osório César, Tarsila influencia-se pela questão política e pelo contexto social invocado pela URSS, onde esteve de passagem. Dessa fase o grande destaque seria a obra “Operários” (1933), a retratação da classe operária, miscigenada e trabalhadora, formando a base da pirâmide social com o desenvolvimento industrial literalmente a todo vapor como plano de fundo. Aqui Tarsila não mostra-se somente influenciada pelas tendências político-sociais do leste europeu, como de forma descarada copia um cartaz russo creditado à V. Kulaguina.

Artista renomada, criativa, original, de traço único e cores singulares; acabava por aqui, arranhar-se, um corte superficial que excluiria e desconsideraria a meu ver, a fase social de seu legado, marcado por: brasilidade, “deglutinação” e pela última vez, Tarsila!

Cromos e Bromos

Com o advento da fotografia, como forma e técnica de representação, as Belas Artes foram atingidas por uma seqüência metamórfica digna de Gregor Samsa, que transformou o modo de ver, de perceber e de se fazer arte.

Se por um lado, a fotografia como representação, desobrigou a pintura da responsabilidade de arquivo histórico e imagético de uma época, de seus costumes e conceitos, o que proporcionou o abandono da figuração perfeccionista como retratação, desenvolvendo novas possibilidades de traços, matizes e abstração, paralelamente ela trilhou um caminho singular que constituía não só na retratação documental do contexto, mas contraditoriamente à exploração do fantástico em plena realidade, esta é a qualidade particular da fotografia.

Uma obra de arte do tempo do academismo das Escolas de Belas Artes representa na pintura, um contexto histórico; hábitos, costumes, epopéias; registram documentalmente uma época, mas de forma alegórica. É a retrato da realidade, mas não a realidade em si. São cores, pinceladas, movimentos, signos do real, mas não o real. A fotografia, ao contrário, congela aquele instante de tempo, o segundo crucial; a realidade como é, sem possibilidades à discussão, mas com muitas possibilidades de interpretação. Entre cromos e bromos a luz do imaginário pode-se despertar.

Roland Barthes em seu ensaio “Câmara Clara” (1984) conceituou o que poderíamos chamar de real e imaginário em duas terminologias especificas: o Studium e o Punctum. Se na primeira, temos um campo onde o observador reconhece, sem dificuldades, uma cultura já vivenciada, consideramos esta uma representação de informações clássicas, de senso-comum em que a emoção é expressa por uma moral já estabelecida e assim identificada como a realidade, a ordem estabelecida como o momento; deduzimos então, no Punctum, o imaginário. O Punctum é o detalhe, o diferencial, o desenho com a luz, texturas, claros, escuros, formas, perspectivas, percepções, um novo olhar; é o que punge da foto e encanta e fere os olhos espectadores.

E de Punctum e Studium bem trabalhados que podemos falar de Boris Kossoy, em destaque na Pinacoteca do Estado, na mostra “Caleidoscópio e a Câmera” que apresenta 100 fotografias distintas em diversas séries, oníricas, surreais e verdadeiras.

Arquiteto de formação, o paulista Kossoy, não faz por menos da fotografia. Se por um lado explora o real e a vida de uma cidade como Nova Iorque, seus movimentos, suas construções, hábitos e cotidianos na série “Nova Iorque”, resgata as verdades muitas vezes despercebidas em cidades como São Paulo, Brasília, Paris em seus “Cartões Anti-Postais”; O artista mostra também, com sutileza, a emoção e a surpresa, o espírito poético de suas imagens em “Viagem pelo Fantástico”, uma série incrível de cenas surpreendentes, divertidas e “punctum-ais” (com a poética licença de Barthes e Guimarães Rosa) com direito até a uma justa homenagem a Escher (Hommage à Escher (2000)).

Se ao lado, “Tarsila Viajante” é o prato principal aos olhares poéticos do público, Kossoy degusta-se como uma sobremesa imperdível ao doce paladar da fantasia; entre cromos e bromos!