domingo, 18 de maio de 2008

Colírios

A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absorver. Z. Bauman

A citação do sociólogo polonês Zygmund Bauman revela o conceito de arte, um modelo de vida, que buscamos seguir para suprir a ausência de sentido, a falta de razão, sem perguntarmo-nos pelo por que, sem preocuparmo-nos em ser; apenas o guia, o manual, instantâneo e descartável, de uma sociedade idealizada e utópica. O que buscamos tanto nas artes, como no se fazer arte, para o existir é a chamada identidade; é justificarmos um mundo em estética; idealizada na harmonia, na lógica, na consistência, que paralelamente, na fluidez da antitese, solidifica o fluxo da experiência. Não percebemos que a identidade não atrasa nem detém esse fluxo, a experiência é que supre o desejo de existir. Dessa forma podemos definir que a sociedade hoje, desconhecida de si, apresenta-se em um período de modernidade líquida, como conceituou o filósofo ou quase líquida como colocou-se na exposição ‘Quase Líquido’ em destaque no Itaú Cultural com curadoria de Cauê Alves.

A modernidade líquida como denominamos é abrir a janela e observar em seu limitado tempo as ruas. Solidificamos nossas vidas nos prédios, arranha-céus; nos becos e vielas das grandes metrópoles, tudo é duro, tudo é áspero, tudo é sólido. Tingimos de cinza as matizes. Cobrimos de concreto o ar. Desenhamos novas paisagens sobre a vida. Todas a tangência das formas que se apresentam aos olhos como objetos sólidos, vazios e sem importância nesse cotidiano sem ser, na verdade é apenas figuração que faz-se protagonista na pós-modernidade. Essa crosta é líquida porque nós somos líquidos. O poder não esta na tradição e no que construímos mas no que somos capazes de fazer. A relação de poder na pós-modernidade não está na onipotência de nosso desenvolvimento, mas no modo evasivo e flexível como é exercido.

A comunicação e o desenvolvimento das tecnologias nos permitiram transpor completamente uma nova relação de tempo e espaço, encurtamento das distâncias e velocidade de informação. Tudo muda constantemente e instantaneamente, o descartável é o novo e é essa sensação cruel que reflete em nossas vidas, essa é a verdadeira essência na sociedade moderna, somos descartáveis, não há razões, não há heróis, nem há motivos, tudo que temos é o hoje, o agora.

É essa sensação de quase líquidos que se esvai e evapora na atmosfera que nos causa angústia e virtual conformidade para uma mentira transposta no passado, em epopéias, romances e deuses que nos dão a frágil sensação de ser; por algo e por alguém.

Ser líquido, entretanto, ultrapassa o cerco das metáforas, ser líquido é mais que uma figura de linguagem quando por qualidade ou conseqüência social percebemos que nos comportamos de modo particular, sem forma estática e definida, mas sempre pronto a transformação. Móveis e fluídos, mas sempre quase, para ser líquido precisamos dissolver as idéias sólidas, transpostas no clássico e no comportamento de todas as estruturas sociais, desde o acesso a informação para todos até uma ‘aparente’ liberdade que se mascara em uma falsa democracia.

É a água desse rio que devemos beber, é dessa fonte que ‘Quase Liquido’ transborda em metáforas, representações e arte contemporânea. Da mostra os principais destaques são Artur Lescher em duas obras, Máquina (2008) e Memória (2008) que contrapõe a questão do moderno em duas óticas diferentes, uma vez que na primeira, transforma a modernidade da indústria e do trabalho, tão característico da revolução industrial representados na solidez do metal em esteiras em uma grande cachoeira fluida, de movimentos leves e soltos, e na segunda, apresenta um vídeo instalação em que escreve letras em um material líquido viscoso que logo se dissolve mostrando a fragilidade da memória que é substituída a todo o tempo pela quantidade e velocidade de informação e linguagens cotidianas que somos submetidos. Caos Guimarães e Rivane Neuenschwander no vídeo Inventário das Pequenas Mortes (Sopro) (2000) que apresenta um balé de bolhas de sabão em lindas paisagens evidenciando a relação de fragilidade e leveza da vida, que em um sopro se dilui. Rosangela Rennó em Experiência de Cinema (2004) onde discute a relação de ilusão imagética invertendo a funcionalidade do cinema projetando ao invés de uma sucessão de imagem sobre uma tela estática, uma tela em movimento construida em uma parede de gotículas de água com uma projeção fotográfica estática recriando assim a discussão dicotômica entre estático e movimento. Zezão com seus vídeo Suco Gástrico (2008) onde relata os córregos do Rio Tietê dos quais se apropria para expressão de seus grafites, fluídos e representativos como paisagem urbana. A relação do grafite como forma de arte em museu é muito conflitante, o fazer grafite se torna arte na medida que expressa uma mensagem de contestação ou não, mas que dialogue com o espaço urbano, quando transpomos essa tipologia para as telas como fazem os irmãos, Os Gêmeos, o discursso torna-se vazio, perde a essência, soa fraco pede rua, clama por becos, vocifera por muros. Zezão, felizmente surpreende não deixando seu habitat, mas ampliando seu alcance de forma representativa que abra o diálogo mesmo no museu do que se propõe, o casamento da cultura underground da pintura ‘suja’ das ruas com as paredes esquecidas dos córregos, transformando o feio em arte.

Falando em córregos deve-se citar de passagem a instalação de Eduardo Srur, Pets (2007-08) onde o artista espalha pelas margens do rio Tietê em sua extensão na cidade de São Paulo, ‘gigantes garrafas plasticas’ despertando a atenção do público. Deixo aqui como registro sem apelar para uma discussão estética uma vez que nessa sociedade veloz e instantânea como apresentou-se aqui, o tempo se esvai como líquido muitas vezes, não possibilitando ver tudo o que gostaríamos.

Cilindros, de Daniel Acosta, ventiladores, Hector Zamora, luz e matiz, de Lúcia Koch e muitas outras vitrines de Ana Tavares, se apresentam em ‘Quase Líquidos’ como um colírio, puro (como a arte), leve (como o ser) e fundamental (como o homem), capaz de aliviar os olhos de uma sociedade da eterna irritação, da constante dor, de querer ser, mas ser sempre quase.