segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Dez minutos, por favor!

Instruções para o público: Calvino em suas viagens pelas noites de inverno diria para você relaxar; concentrar-se; afastar-se de qualquer outro pensamento para que o mundo se dissolve no indefinido. Fechar a porta, desligar a televisão, escolher a posição mais cômoda, sentado, deitado, estendido, encolhido; de costas, de lado de bruços. Confesso, seria uma façanha. O computador não permite muitas posições, mas nada que uma confortável poltrona não resolva. Ajeite-se no encosto, sinta-se acolhido e; para com isso, saia do MSN por enquanto; não há regras a única instrução deferida é dedicar aqui, um pouco de seu tempo.

Tempo, é justamente o tempo que Marina Abramovic, em sua primeira individual no Brasil apresentada pela Galeria Brito Cimino, busca desafiar. Nada é capaz de parar o tempo. A relação temporal com homem é dada pela utopia de um dia superá-lo, e é essa evidência, esse falso controle, demagógico e intrínseco às aspirações e inspirações humanas que talvez crie essa maratona que corremos incansavelmente no frenético caos instaurado nas grandes cidades, nas largas avenidas, no comprido cotidiano que estende-se para o dia, avançando pelas horas, nos auferindo tempo para um insuficiente tudo.

O tudo é nada porque queremos o tudo e mais um pouco, lutamos com a ditadura do tempo, que não para, mas mascaramos nosso egoísmo, o tempo é universal, mas queremos o tempo só para nós, quando mais velhos se fica mais rápido passa o tempo, mas quando temos menos tempo mais ambições almejamos, a questão temporal expressa aqui talvez seja diagnosticada pelo capitalismo, pela lei do acumulo. Acumulamos tarefas, acumulamos deveres, acumulamos as santificadas horas extras, que não significa tempo adicional, tudo isso porque aprendemos a querer sempre mais. Nessa simples palavra resume-se o todo. Na adição que está hipótese do acúmulo. Acumular é regra: mais negócios, mais carros, mais amigos, mais viagens, mais comida, mais eu, mais você, mais tudo; minimalistas nem um pouco; abraçamos o mundo superficial, linear e infinito, que não sustenta o mais e mais, de nossa realidade circular e limitada. E se mais é o certo, óbvio, não precisamos ceder, só necessitamos de mais tempo, tempo inexistente, mas fundamental para a vida; não para se viver, mas para sentir-se vivo; porque se dinheiro é vida, tempo é dinheiro!

Socamos, chutamos, batemos de frente, eternamente contra o tempo, brigamos como nunca, perdemos como sempre, o tempo eterno e vida curta. Relógios, cientistas, fotógrafos, nenhuma de nossas armas freia o tempo, a não ser o artista, nas palavras do próprio tempo, traduzidas por Luis Fernando Veríssimo em “O Arteiro e o Tempo”:

- É. Ele pode me fazer parar, como o relojoeiro ou o macaco com o martelo. Pode me virar ao avesso para me examinar como o cientista. Pode me congelar ,como o fotógrafo. Mas só ele pode mais.

- Pode o que?

- Pode desafiar a minha ditadura.

Marina Abramovic é uma dessas artistas, seu desafio não é o conflito com o tempo, não é juntar o passado, presente e futuro, na mesma tela, não é telegrafar um instante de tempo e guardá-lo no consciente coletivo, seu grande feito está nas performances que como ela abraça o “inimigo”; caminha de mãos dadas mostrando que o tempo existe, que há e sobra, que o castigo vem dos homens e do estilo de vida que adotamos; o tempo do seu escritório, o tempo do seu trânsito, o tempo do seu lazer, não é o seu tempo, é desperdiço. O tempo nosso, está em nós mesmos e é isso que a artista e seu Transitory Object for Human Use [Objeto transitório para uso humano] desperta para cada um.

Acupuntura, spa, divãs, nada que um museu não permita, sua arte é delicadamente alternativa sensorial, sem nenhuma imposição visual como Kapoor muito menos impressões táteis terapêuticas de Lygia Clark. A obra interage diretamente com o público, mas não agrega em sensações e sim na reflexão individual, pessoal e temporal de cada um. É uma arte de autoconhecimento, meditativa, e natural. O diálogo do corpo com a natureza. Ametistas, quartzos, pedras, metais. Energia natural com espírito corporal, sem misticismo, sem ritual.

Como cientista de nós mesmos começamos vestindo seu “Parangolé”; o jaleco branco Blending-in Coats e logo passamos pela primeira experiência Time Energize que situa dois pontos no chão sobrepostos ao magnetismo dos hemisférios norte e sul. Dez minutos depois Magnetic Walk nos dá a sensação do peso do mundo pela longa vereda. Doube Edge For No Human Use, explora a agonia de querer subir e machucar-se, apela para nós mesmos e nossas escolha, não há atalhos sem cortes, caminhos sem feridas. Contemplado o futuro é hora despir-se das imposições dogmáticas da sociedade, do estabelecimento do certo e deitar-se na Soul Operation Table, operação de uma hora com cores e néon.

No andar se cima é o momento da observação, do pós-operatório. Sentar, refletir, conhecer-se em Rejuvenetor of the Astral Balance. Deitar-se de pé, deitar-se sentado, deitar-se esticado, sobre sua série de dragões, [Dragon Black, White and Red]. E após um banho de camomila em Reprogramming Levitation Module, esperar a alta da artista, do tempo e de nós em Waiting Room.

Parecendo mais uma clínica do que uma galeria, mais uma meditação do que arte, Marina Abramovic presenteia o público não com metafísica, filosofia e intelectualidade, mas com um trabalho, que teve origem aqui mesmo no Brasil em 1989, e que a casa retorna para provar que o tempo é agora, e nós quem fazemos. Não falei de tempo ao citar as obras, mas é principalmente dele que se trata, pode ficar horas ou minutos em cada estrutura, vai sentir a mesma coisa, nada!

Um nada que está em tudo, porque é na participação, na reflexão terapêutica e na troca em que consistem esses objetos transitórios para uso humanos, não é uma experiência mística ou ritual do espírito é apenas você, a obra só existe em você, e o tempo também. Marina quer seu tempo e lhe dá no trabalho uma experiência, se não boa, relaxante.

Se algo visível para algo invisível, então algo invisível torna-se algo visível”

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Rei, Bispo e Artista

Pode alguém fazer obras que não sejam de arte?

"Picasso tornou visível o nosso século; Duchamp nos mostrou que todas as artes, sem excluir a dos olhos, nascem e terminam em uma zona invisível. À lucidez do instinto opôs o instinto da lucidez: o invisível não é obscuro nem misterioso, mas transparente..." a observação de Octavio Paz no livro “Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza” é o reduto em que se percebe a importância desse franco-americano no que se refere à história da arte. Se Picasso transformou a arte na manifestação da forma como vida, Duchamp, não menos importante, revolucionou, na constatação da vida como arte. Influência de onze entre dez artistas contemporâneos, Marcel Duchamp, mais que polêmico, é o divisor de águas fundamental para entender o que era arte é o se fazer arte, o antes e o agora.

O conceito tradicional de arte, respaldado no clássico e no romântico, no belo e no sublime, na pintura e na escultura desde o tempo da renascença vem confrontando-se, revezando-se e reinventando-se a cada nova vanguarda. Das formas proporcionais à ‘disformes’ cubistas, passando pela luz iluminada do impressionismo, toda arte moderna sempre foi, senão, a repetição dos mesmos dilemas, razão e sensação, pela transformação no sentido formal da obra. O gesto mudava, a luz variava, a forma misturava, mas sempre presente, a inexorável áurea plástica da obra de arte, o sagrado, o inatingível, arte retiniana, para ser consumida, para ser apreciada. Duchamp aparece da mesmice como o ‘anti-artista’, rompendo com todos os paradigmas do que era arte até então; se até Picasso a arte se reproduzia originalmente entre paredes e museus, molduras e paspatours, olhares e apreciação, representando a superioridade da intelectualidade e do talento humano como legado narcisista de nossa civilização, após Marcel a arte renascia para um mundo que paralelamente se reconstruía no caos do cotidiano, das ‘quase virais’ indústrias e das monstruosas cidades, do erotismo a da moralidade, da guerra certa e do pacifismo errado, da arte como parte da vida e da vida como processo de arte.

Duchamp torna-se o maior artista do século XX pelo simples motivo de não descobrir uma nova forma de representação dos objetos artísticos, instaurados e copiados dos sistemas tradicionais de arte, mas justamente por desconsiderá-los; em outras palavras, por não ter feito nada e com esse nada ter construído tudo. Cada artista, desde os renascentistas, vem instaurando novas técnicas, formas de pintar e matérias, mas sempre respaldados pela forma já consolidada e tradicional; o que muda são os gestos, mas os processos, os dilemas, os objetos são sempre os mesmos, o que Duchamp fez foi subtrair as já saturadas constatações para outra ótica, seu foco não é mais formal, mas processual, a arte vem do conceito, do processo artístico, da vida e desse modo funde-se com o real renovando todo objeto artístico, instaurando uma nova ordem, onde toda arte é vida e tudo na vida pode ser arte.

Com essa nova arte, Duchamp é convidado ilustre no aniversário de 60 anos do MAM (Museu de Arte Moderna) na exposição, inaugurada dia 15 de julho, “Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra de arte” curada pela especialista no artista, Elena Filipovic.

Com contribuições de grandes instituições como o Centre Pompidou (Paris), Indiana University Art Museum; e principalmente do Philadephia Museum of Art, a mostra torna-se a maior apresentação do mestre na América Latina constando de 120 obras fundamentais para entender a arte incompreensível que faz-se nos dias de hoje.

Duchamp foi um artista de mais polêmicas e embates do que propriamente um produtor de obras em grande escala, talvez isso se deva pela obsessão e interesse pelo xadrez que após um tempo negligenciou o artista para as artes plásticas aposentando-o do labor artístico para concentrar-se integralmente na função estratégica e profissional do jogo. Esse fato não diminui em nada a genialidade e a importância de seu trabalho para a estética (filosofia). Duchamp se não apresenta um número exagerado de obras, por pensá-la como estética, como conceito, como anti-arte, possui a coleção mais intrigante do pensar arte.

Contemporâneo dos surrealistas e dos dadaístas, e testemunha dos avanços tecnológicos na arte, a fotografia, Duchamp apropria e dialoga com essas vanguardas de maneira muito aberta em suas obras.

A primeira peça em destaque na sala do MAM é Bicycle Wheel (1913) em português "Roda de Bicicleta". Primeiro ready-made criado pelo artista, a obra é desenvolvida por um banco de madeira sobreposto por um aro de bicicleta, ambos presos pelo garfo da própria, onde, na medida que o banco encontra-se como base e a roda apresenta-se como elemento superior livre de movimentos. Aqui, muito mais que a relação dicotômica do movimento que a roda poderia realizar contraposta pela estática do banco, o que se discute é a inserção de objetos cotidianos como objetos de arte e assim a vida como arte.

O conceito de ready-made, desenvolvido pelo artista, define-se no rompimento com os suportes específicos de arte, pintura e escultura, transferindo para a arte a plataforma da vida, da rotina, do cotidiano. É o transporte de um elemento da vida diária, a priori, não estabelecido como objeto artístico, como obra de arte, do modo que, não é o labor visual ou formal da obra que está em questão, mas a lucidez do conceito, da escolha e do processo de se pensar a obra. Instalação, happening, performaces; o ready-made pode ser considerado responsável e precursor de todas as tendências formais da arte contemporânea, é o marco inicial que separa o moderno e o pós-moderno, a originalidade e o contemporâneo.

La Mariée mise à nu par sés celibataires, même [A noiva despida por seus celibatários, mesmos] popularmente chamada de "Grande Vidro" (1915 à 1925) aparece para os críticos como a obra mais festejada e fundamental para a compreensão da proposta "duchampiana”. Aqui ele se apropria praticamente de todos os temas e elementos essenciais do seu fazer arte. A obra é descrita por duas grandes lâminas de vidro, uma sobre a outra, onde na parte superior encontra-se a “noiva” em abstração flutuando nas nuvens e abaixo “os celibatários” feitos de fios, tecidos e outros materiais envoltos a uma engrenagem de moinho de café. Não há consenso para o entendimento da obra como matéria lógica, exata, narrativa como até então se escrevia a história da arte, o que importa é o questionamento, a transparência do suporte, sua onipresença (tamanho) e sua fragilidade (material), o aspecto mecânico das imagens (homem e máquina), o tema erótico (noiva e os celibatários), a incorporação do acaso no desenvolvimento do trabalho (iniciado em 1915 e inacabado e abandonado em 1925) e até mesmo a sátira no nome da obra em francês, que pela sonoridade aproxima “Même” (mesmos) com “m’aime” (me ame).

Fontaine (1917) aparece como a obra mais polêmica da coleção de Duchamp. A biografia dessa obra pode ser considerada como exemplo máximo da discussão e enfrentamento que incitou sobre o conceito de tradição na arte. Consolidado e respeitado como artista, o protagonista foi convidado a participar do seleto júri de um importante evento autônomo de arte, o "Salão dos Independentes". Hiper-ativo, não conformado apenas com a responsabilidade de julgar, ele inscreveu um urinol de banheiro, sobre pseudônimo e assinatura de R. Mutt, para concorrer com milhares de outras obras de autores anônimos. Alegando a produção industrial em série, um objeto comum e sem labor manual, o júri negou veementemente a proposta secreta de Duchamp que discorreu sobre repulsa. Por que aquele objeto não poderia ser arte? O objeto estava assinado (ironia ao valor artístico da obra), possuía forma passível de interpretação (disposta diferentemente do modo típico de instalação da louça em banheiros) e principalmente era fruto de uma escolha, de um processo intelectual do artista de conceituar ou teorizar um objeto como obra de arte.

A iconoclastia de Duchamp não foi revelada; esquecida até sua morte, a fonte despertou-se quando pública, fez-se, "Boíte-en-Valíse" (1935 à 1941), uma caixa colecionavél, pensada como "mala museu" que apresentava réplicas em miniaturas, reproduções, de todas suas obras; constando inclusive, para surpresa de todos, do incompreendido urinol. A partir daí o provocante ready-made tornou-se a obra de arte mais estudada e discutida no fim do século para a definição do que podemos chamar ou não de arte.

Em relação à pintura, Duchamp aparece com menor brilho, mas com a mesma polêmica e o sarcasmo ácido de sempre. Três obras aparentemente se destacam: Nù Descendant L’escadier (1912); Phamacy (1914) e L.H.O.O.Q. (1919)

A primeira representa grandes traços do modernismo, principalmente cubista e futurista retratando uma forma, disforme e abstrata, descendo (movimento pela sobreposição da ação) uma possível escada. A coloração marrom amarelada em uma ação humana, de forma maquinal apelava não para a representação da pintura como forma de registro histórico ou de sensação, mas única e exclusivamente a representação da realidade como fluxo, não como a vemos, sentimos ou percebemos. Sua intenção era de conquistar o movimento, simulacro da vida, para arte, o que na pintura imagem estática era impossível.

Pharmacy por sua vez, já constava da interação da vida à obra. Esse quadro é pintado exatamente sobre o original de um autor anônimo sobreposto por três pontos vermelhos na pintura. A pintura aqui traz não só o elemento vida, mas como a discussão freqüente de sua obra do que é original em arte.

Por último L.H.O.O.Q é uma paródia satírica de Gioconda de Da Vinci, a tela apropria-se de um pôster em que na composição, Duchamp, acrescenta cavanhaque e bigode a figura de Mona Lisa. Novamente discute-se o conceito de original, da reprodução, do erotismo (evidenciado no sarcasmo da sigla em francês que assemelha-se à "Elle A Chaud Au Cul” traduzida para “Ela tem fogo no rabo”), da arte como simulacro da vida e principalmente da santificação da obra de arte criada apenas para ser vista e apreciada e não vivida.

Para arte, estética e vida, respectivamente rei, bispo e artista! Falar de Duchamp torna-se suspeito, por sua importância e admiração, impossível, pela contrariedade instigante e mistérios de suas obras, mas essencial para perceber e compreender a arte como um todo. Se ainda destacam-se Fresh Window (1920), Rotoreliefs (1935) e sua série de fotografias travestida de Madame Rrose Sélavy, termino esse ensaio nas palavras de Filipovic: “sua obra é como se fosse uma grande partida de xadrez: astuta, complexa e inteligente”.

domingo, 18 de maio de 2008

Colírios

A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absorver. Z. Bauman

A citação do sociólogo polonês Zygmund Bauman revela o conceito de arte, um modelo de vida, que buscamos seguir para suprir a ausência de sentido, a falta de razão, sem perguntarmo-nos pelo por que, sem preocuparmo-nos em ser; apenas o guia, o manual, instantâneo e descartável, de uma sociedade idealizada e utópica. O que buscamos tanto nas artes, como no se fazer arte, para o existir é a chamada identidade; é justificarmos um mundo em estética; idealizada na harmonia, na lógica, na consistência, que paralelamente, na fluidez da antitese, solidifica o fluxo da experiência. Não percebemos que a identidade não atrasa nem detém esse fluxo, a experiência é que supre o desejo de existir. Dessa forma podemos definir que a sociedade hoje, desconhecida de si, apresenta-se em um período de modernidade líquida, como conceituou o filósofo ou quase líquida como colocou-se na exposição ‘Quase Líquido’ em destaque no Itaú Cultural com curadoria de Cauê Alves.

A modernidade líquida como denominamos é abrir a janela e observar em seu limitado tempo as ruas. Solidificamos nossas vidas nos prédios, arranha-céus; nos becos e vielas das grandes metrópoles, tudo é duro, tudo é áspero, tudo é sólido. Tingimos de cinza as matizes. Cobrimos de concreto o ar. Desenhamos novas paisagens sobre a vida. Todas a tangência das formas que se apresentam aos olhos como objetos sólidos, vazios e sem importância nesse cotidiano sem ser, na verdade é apenas figuração que faz-se protagonista na pós-modernidade. Essa crosta é líquida porque nós somos líquidos. O poder não esta na tradição e no que construímos mas no que somos capazes de fazer. A relação de poder na pós-modernidade não está na onipotência de nosso desenvolvimento, mas no modo evasivo e flexível como é exercido.

A comunicação e o desenvolvimento das tecnologias nos permitiram transpor completamente uma nova relação de tempo e espaço, encurtamento das distâncias e velocidade de informação. Tudo muda constantemente e instantaneamente, o descartável é o novo e é essa sensação cruel que reflete em nossas vidas, essa é a verdadeira essência na sociedade moderna, somos descartáveis, não há razões, não há heróis, nem há motivos, tudo que temos é o hoje, o agora.

É essa sensação de quase líquidos que se esvai e evapora na atmosfera que nos causa angústia e virtual conformidade para uma mentira transposta no passado, em epopéias, romances e deuses que nos dão a frágil sensação de ser; por algo e por alguém.

Ser líquido, entretanto, ultrapassa o cerco das metáforas, ser líquido é mais que uma figura de linguagem quando por qualidade ou conseqüência social percebemos que nos comportamos de modo particular, sem forma estática e definida, mas sempre pronto a transformação. Móveis e fluídos, mas sempre quase, para ser líquido precisamos dissolver as idéias sólidas, transpostas no clássico e no comportamento de todas as estruturas sociais, desde o acesso a informação para todos até uma ‘aparente’ liberdade que se mascara em uma falsa democracia.

É a água desse rio que devemos beber, é dessa fonte que ‘Quase Liquido’ transborda em metáforas, representações e arte contemporânea. Da mostra os principais destaques são Artur Lescher em duas obras, Máquina (2008) e Memória (2008) que contrapõe a questão do moderno em duas óticas diferentes, uma vez que na primeira, transforma a modernidade da indústria e do trabalho, tão característico da revolução industrial representados na solidez do metal em esteiras em uma grande cachoeira fluida, de movimentos leves e soltos, e na segunda, apresenta um vídeo instalação em que escreve letras em um material líquido viscoso que logo se dissolve mostrando a fragilidade da memória que é substituída a todo o tempo pela quantidade e velocidade de informação e linguagens cotidianas que somos submetidos. Caos Guimarães e Rivane Neuenschwander no vídeo Inventário das Pequenas Mortes (Sopro) (2000) que apresenta um balé de bolhas de sabão em lindas paisagens evidenciando a relação de fragilidade e leveza da vida, que em um sopro se dilui. Rosangela Rennó em Experiência de Cinema (2004) onde discute a relação de ilusão imagética invertendo a funcionalidade do cinema projetando ao invés de uma sucessão de imagem sobre uma tela estática, uma tela em movimento construida em uma parede de gotículas de água com uma projeção fotográfica estática recriando assim a discussão dicotômica entre estático e movimento. Zezão com seus vídeo Suco Gástrico (2008) onde relata os córregos do Rio Tietê dos quais se apropria para expressão de seus grafites, fluídos e representativos como paisagem urbana. A relação do grafite como forma de arte em museu é muito conflitante, o fazer grafite se torna arte na medida que expressa uma mensagem de contestação ou não, mas que dialogue com o espaço urbano, quando transpomos essa tipologia para as telas como fazem os irmãos, Os Gêmeos, o discursso torna-se vazio, perde a essência, soa fraco pede rua, clama por becos, vocifera por muros. Zezão, felizmente surpreende não deixando seu habitat, mas ampliando seu alcance de forma representativa que abra o diálogo mesmo no museu do que se propõe, o casamento da cultura underground da pintura ‘suja’ das ruas com as paredes esquecidas dos córregos, transformando o feio em arte.

Falando em córregos deve-se citar de passagem a instalação de Eduardo Srur, Pets (2007-08) onde o artista espalha pelas margens do rio Tietê em sua extensão na cidade de São Paulo, ‘gigantes garrafas plasticas’ despertando a atenção do público. Deixo aqui como registro sem apelar para uma discussão estética uma vez que nessa sociedade veloz e instantânea como apresentou-se aqui, o tempo se esvai como líquido muitas vezes, não possibilitando ver tudo o que gostaríamos.

Cilindros, de Daniel Acosta, ventiladores, Hector Zamora, luz e matiz, de Lúcia Koch e muitas outras vitrines de Ana Tavares, se apresentam em ‘Quase Líquidos’ como um colírio, puro (como a arte), leve (como o ser) e fundamental (como o homem), capaz de aliviar os olhos de uma sociedade da eterna irritação, da constante dor, de querer ser, mas ser sempre quase.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Pela última vez, Tarsila

Pela última vez, Tarsila! Engano, nunca será possível uma última vez, Tarsila tornara-se sinônimo da Arte Brasileira, tal a importância da mineira para o desenvolvimento da identidade nacional tupiniquim, tal as célebres polêmicas envolvidas, tal a autoria da obra brasileira mais valiosa em termos mercadológicos.

Destaque máximo na Pinacoteca do Estado até 16 de março, “Tarsila Viajante” comemora os 80 anos de “Abaporu”, recorde de arrecadação por uma obra nacional em um leilão, revelando a cronologia exata das fases modernistas e do mito Tarsila do Amaral.

A primeira fase de destaque da artista é denominada “Pau-Brasil”. Obras como “São Paulo (Gazo)” (1924); “Carnaval em Madureira” (1924) “Paisagem com touro” (1925); “O mamoeiro” (1925); “A Feira” (1925), revelam o resgate da identidade nacional, da brasilidade, de uma cultura exclusiva daqui, cores caipiras, hábitos locais. Tarsila é a primeira a representar nossas formas com um traço específico. Não à toa, Tarsila e a geração de 22 é considerada o parto da arte brasileira, o rompimento com o academismo para a construção do “nosso”. Aqui, aparece a primeira polêmica, é evidente que Tarsila e companhia foram únicos na retratação do Brasil como percebiam (e não como era, vale lembrar que Tarsila e muitos outros faziam parte da Aristocracia Rural, vigente na época). Mas é inegável que ainda que se propusessem a uma arte gerada no útero do Trópico de Capricórnio, claramente, sua mãe de leite foram as tendências européias, uma vez que, como de costume, todos os artistas brasileiros de destaque, naquela época, passaram temporadas de estudos na Europa onde, aprimoraram técnicas e descobriram tendências modernas. Assim, o modernismo brasileiro não foi a original descoberta de uma cultura nacional, mas sim a adequação da identidade nacional a tendências modernas européias. Essa constatação não diminui a contribuição desse movimento para a formação nacional, se não primávamos pela autoria, certamente, podíamos nos vangloriar de pela primeira vez, relatar nossas formas, matizes e hábitos, como aparentemente pareciam ser.

A segunda fase de Tarsila é o grande marco da artista como autora e da arte brasileira como forma. A fase “Antropofágica”, fecundada através do presente “Abaporu” para Oswald de Andrade, seu marido até então, descarta o que no Pau-Brasil consistia em originalidade e afirma conceitualmente o que propus no parágrafo acima. “A Negra” (1923); “Abaporu” (1928) e “Antropofagia” (1929) formam a tríade da arte de Tarsila, deformação das formas, cores brasileiras, e surrealismo tangente. A antropofagia propunha a “deglutinação” da cultura européia em algo brasileiro, não negava tendências anteriores para formar as nossas, mas com maturidade assumia que toda cultura é valiosa e pode ser transformada a fim de moldar-se a uma identidade própria. Enfim, assumimos nossas influências e alcançávamos o expoente máximo de nossa arte. Nessa fase Tarsila, “surrealista” se assim podemos rotulá-la, não só representou nossas formas, mas também explorou o imaginário e o onírico em telas como “A Lua” (1928) “Sono” (1928); “O Touro (Boi na Floresta)” (1928); O Lago (1928).

Depois do auge antropofágico, há o declínio evidenciado em sua fase social. De novo companheiro, o socialista Osório César, Tarsila influencia-se pela questão política e pelo contexto social invocado pela URSS, onde esteve de passagem. Dessa fase o grande destaque seria a obra “Operários” (1933), a retratação da classe operária, miscigenada e trabalhadora, formando a base da pirâmide social com o desenvolvimento industrial literalmente a todo vapor como plano de fundo. Aqui Tarsila não mostra-se somente influenciada pelas tendências político-sociais do leste europeu, como de forma descarada copia um cartaz russo creditado à V. Kulaguina.

Artista renomada, criativa, original, de traço único e cores singulares; acabava por aqui, arranhar-se, um corte superficial que excluiria e desconsideraria a meu ver, a fase social de seu legado, marcado por: brasilidade, “deglutinação” e pela última vez, Tarsila!

Cromos e Bromos

Com o advento da fotografia, como forma e técnica de representação, as Belas Artes foram atingidas por uma seqüência metamórfica digna de Gregor Samsa, que transformou o modo de ver, de perceber e de se fazer arte.

Se por um lado, a fotografia como representação, desobrigou a pintura da responsabilidade de arquivo histórico e imagético de uma época, de seus costumes e conceitos, o que proporcionou o abandono da figuração perfeccionista como retratação, desenvolvendo novas possibilidades de traços, matizes e abstração, paralelamente ela trilhou um caminho singular que constituía não só na retratação documental do contexto, mas contraditoriamente à exploração do fantástico em plena realidade, esta é a qualidade particular da fotografia.

Uma obra de arte do tempo do academismo das Escolas de Belas Artes representa na pintura, um contexto histórico; hábitos, costumes, epopéias; registram documentalmente uma época, mas de forma alegórica. É a retrato da realidade, mas não a realidade em si. São cores, pinceladas, movimentos, signos do real, mas não o real. A fotografia, ao contrário, congela aquele instante de tempo, o segundo crucial; a realidade como é, sem possibilidades à discussão, mas com muitas possibilidades de interpretação. Entre cromos e bromos a luz do imaginário pode-se despertar.

Roland Barthes em seu ensaio “Câmara Clara” (1984) conceituou o que poderíamos chamar de real e imaginário em duas terminologias especificas: o Studium e o Punctum. Se na primeira, temos um campo onde o observador reconhece, sem dificuldades, uma cultura já vivenciada, consideramos esta uma representação de informações clássicas, de senso-comum em que a emoção é expressa por uma moral já estabelecida e assim identificada como a realidade, a ordem estabelecida como o momento; deduzimos então, no Punctum, o imaginário. O Punctum é o detalhe, o diferencial, o desenho com a luz, texturas, claros, escuros, formas, perspectivas, percepções, um novo olhar; é o que punge da foto e encanta e fere os olhos espectadores.

E de Punctum e Studium bem trabalhados que podemos falar de Boris Kossoy, em destaque na Pinacoteca do Estado, na mostra “Caleidoscópio e a Câmera” que apresenta 100 fotografias distintas em diversas séries, oníricas, surreais e verdadeiras.

Arquiteto de formação, o paulista Kossoy, não faz por menos da fotografia. Se por um lado explora o real e a vida de uma cidade como Nova Iorque, seus movimentos, suas construções, hábitos e cotidianos na série “Nova Iorque”, resgata as verdades muitas vezes despercebidas em cidades como São Paulo, Brasília, Paris em seus “Cartões Anti-Postais”; O artista mostra também, com sutileza, a emoção e a surpresa, o espírito poético de suas imagens em “Viagem pelo Fantástico”, uma série incrível de cenas surpreendentes, divertidas e “punctum-ais” (com a poética licença de Barthes e Guimarães Rosa) com direito até a uma justa homenagem a Escher (Hommage à Escher (2000)).

Se ao lado, “Tarsila Viajante” é o prato principal aos olhares poéticos do público, Kossoy degusta-se como uma sobremesa imperdível ao doce paladar da fantasia; entre cromos e bromos!

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Quincas Borba

I want not to want anymore.

Leia Nietzsche! Coloque Nirvana no talo! Se a insatisfação for suficiente, ainda misture boas doses de bebidas, antidepressivos ou qualquer coisa que desperte no caro leitor, a moda da bipolaridade. Pronto, o estado de espírito presente é o prenúncio de um disfarce que revela-se ao relativismo de uma verdade. Agora, antes de cortar as orelhas, assista a performance de Marina Abramovic, “The Onion” (1996), principal destaque da Galeria Brito Cimino, de cara nova, após 10 anos de atividade no circuito brasileiro de arte.

Freud. Lacan... não precisa ser psicanalista para compreender o estado depressivo maquiado que a contemporaneidade impõe aos pós-modernos. A doença do pós-modernismo está diagnosticada no que Sartre chamou de “Náusea”, uma descoberta perplexa de ausência do sentido da vida e a incapacidade de modificar alguma condição que possa transformar essa percepção. Ao citar a "Náusea" como causa psicológica e conseqüência do contemporâneo, deixo que uma individualidade emocional possa a ser expressa no texto, o que não seria interessante, uma vez que, correr-se-ia o risco de perder-se no caminho perigoso do senso comum, de tropeçar no gosto, e beijar o chão com o achismo, que eliminaria a priori o senso critico necessário. Mas, se optarmos ainda pela visão relativista da filosofia, o sentimento é fundamental no trabalho critico: perceber, captar, sentir. O tato, mesmo que seja com o olhar (e isso não é impossível) faz-se necessário para que a bagunça que a semiótica e o contemporâneo, felizmente, fizeram em relação à arte, possam ser observadas, digeridas e engolidas. O fato é: racional ou não, não dá para falar de vida sem expor a emoção.

Marina Abramovic, em breve biografia, já foi Iugoslava, Serva-Montenegrina, e hoje não sei se só Serva ou decididamente Montenegrina. A confusão criada pelas fronteiras da extinta URSS, e as barreiras étnicas que impomos uns aos outros são suporte suficientes para uma arte crítica e política que embora importante e necessária, não limitou a artista a abordar outros temas e explorar a arte em diversas possibilidades através da performance, que surge como uma verdadeira identidade, a registra como cidadã do mundo.

Quem nasce na guerra deve preocupar-se exclusivamente com as batalhas. Entre bombas e metralhadoras, procurar abrigo nem que seja em um dos lados, torna-se a razão e a emoção dos refugiados, a vida é consumida pelo conflito. Essa é a impressão verdadeira e simultaneamente superficial da maioria das pessoas. Nascer na guerra é preocupar-se com o conflito sim, vive-lo, senti-lo, morrê-lo. Mas é também ignorar isso. Nascer na guerra não é ser palestino, haitiano, “iugoslavo”. É ser brasileiro, e não só favelado. Nascer na guerra é nascer no mundo, é ser homem.

O homem nasceu na guerra e os inimigos somos nós mesmo! Abrigamos-nos no preconceito; cores, raças, etnias; Limitamo-nos às definições, nos ismos; Nossas moedas valem mais e valem menos; pobreza e miséria! Nossos deuses brigam em demonstração de fé e poder; Achamo-nos superiores sem sentido, desempenhamos nosso papel, aprendemos a ser útil, a nos prostituir, a nos vender, como máquinas, de corpo e alma, sem parar, mais e mais, dia a dia, abandonamos o viver, para pagar a conta da televisão a cabo, para comprar roupas, sustentar o luxo que nem podemos aproveitar, pois amanhã já teremos que trabalhar de novo. Então percebemos que a resposta para o inexorável esforço físico e mental é apenas resultado de uma implacável busca para a explicação da vida. Somos tão especiais que devemos, ao contrário do resto do universo, ter alguma missão, algum sentido. Somos egoístas, individuais e por isso o pós-moderno é apenas o resultado final de um processo de vida e produção, voltada a si mesmo. O espetáculo está no consumo. Nos planos que devemos ter. Nos valores de homem ideal, fabricado e vendido pelo humanismo. Somos 6 bilhões e todos sem exceção se sentem sozinho. É ai que entra os divãs, as bebidas, Kurt Cobain e muito de Nietzsche.

Felicidade instantânea, transtornos e decepções e sobreviver a si mesmo. Marina Abramovic degusta a vida como ela é. Experimente as lágrimas! Descasque a farsa! E quem sabe: ao vencedor, as cebolas!

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

De um homem só

“Tudo estava de algum modo morto e importava construir algo novo a partir dos cacos”. Reconstruir, curar loucuras de um tempo, sustentar uma nova ordem, essa era a missão da Merz, de Kurt Schwitters (1887-1948), artista alemão, inovador, precursor e degenerado em sua genialidade.

Kurt Schwitters vem ao Brasil com uma mostra individual na Pinacoteca do Estado, onde podemos percorrer a trajetória do artista em 120 obras que variam das vanguardas figurativas européias a abstração do conceito Merz.

Merz, como identificou sua arte a partir de 1918, foi um nome retirado de uma colagem em que a palavra “Merz” se destacava na composição. No anúncio, desfigurado na obra, a palavra era somente uma sílaba de Kommerzbank (Banco do Comércio), mas para Schwitters, Merz significava o rompimento estético com a vanguarda figurativa, era a pura libertação da arte dos grilhões emblemáticos em beneficio a uma livre composição artística, significava quebrar com qualquer paradigma estético. Nessa abordagem é valido considerar Schwitters como um dos precursores do dadaísmo e da anti-arte, anos depois difundidos na própria Alemanha, de onde foi exilado, por George Maciunas e o Grupo Fluxos.

É interessante perceber que na realidade a Merz significava a aproximação da arte com a vida, a relação entre objetos e seus significados, era uma forma de reconstruir a arte através da reconstrução social, afetada e bombardeada pelas mazelas e destroços da Primeira Guerra Mundial.

Sua obra pós-primeira guerra caracteriza-se pela colagem como forma de representação e “resignificação” da arte. Do mais banal pedaço de papel à mais rebuscada forma de lixo: tecidos, vidros, madeiras, onde quer que fosse Schwitters desmembrava a alma Merz. Soprava vida, congelava sensações; cores, texturas, formas; experimentava o viver através da arte, unia intrinsecamente a tangível realidade cotidiana, do ser, do homem, dos objetos, com a intocável metafísica da arte, ilusória e estética, imaginativa e mágica.

O ambiente caótico, destrutivo, associadas ao contexto histórico, Primeira Grande Guerra, é fator indiscutível e essencial para a construção conceitual de suas obras. As colagens com restos de madeiras, espelhos e muitos tecidos e papéis, provenientes das mais distintas fontes, como anúncios, jornais, correspondências e a freqüente utilização das latas de lixo, exploram com o rompimento das formas artísticas idealizadas na pintura e escultura para trazer a verdade e o real à arte. O aspecto mais relevante desse contexto é que embora o caos e a sensação de movimento destrutivo, evidenciado em cores escuras e suaves e texturas ásperas e conflitantes, a composição formal da obra em sua geometrização apresenta uma organização que contrapõe as sensações de bagunça. O paradoxo mostra-se como uma curiosidade estética fundamental na obra de Schwitters, a obra provem do caos e no caos esta a ordem.

Teoria do Caos não compreendida pela arrogância, preconceito e imbecilidade nazista. A intolerância, racial, xenofóbica e por que não, destrutiva, considerou a vanguarda Merz como uma aversão ao conceito artístico, degeneralizou Schwitters a ponto de exilá-lo da Alemanha. O frente nazista considerava a arte Merz como a verdadeira vulgarização e banalidade do ideal artístico, representado na disciplina e na organização. Loucura, perturbação, o que a arte de Schwitters sinceramente transmite é a sensação de ordem e reconstrução, justamente as peculiaridades que o despotismo do regime o acusou de não ter. Ausência de um ideal, excesso de liberdade! Schwitters deu ao artista, mais que a possibilidade, o direito, de compor um quadro com o que quiser desde que este seja capaz de compor um quadro, ou seja, seja artista.

Embora a figuração ainda marque algumas obras do alemão, especialmente na primeira fase de sua carreira onde explora o expressionismo e o cubismo em pinceladas marcantes e cores vibrantes, Schwitters nunca deixou o tendência a experimentação. Seu maior feito e destaque na mostra em São Paulo é o intitulado “Merzbau” (Construção Merz - 1933) uma construção em que o artista explora e absorve tudo o que a Merz significou. Trata-se de uma grande obra em que o artista mescla arquitetura, abstração e objetos cotidianos. Uma sala inteira de formas geométricas sobrepostas, cobertas por um calmo branco que varia nas sombras e contrastes devido a exposição da luz, ora fluorescente ora incandescente. A cada fecho de luz, novas formas, novas linhas, novos objetos se evidenciam; mostram-se ao olhar, tocam o ser em sensações diversas, que variam da tranqüilidade do branco a confusão das formas. Colagens, espelhos, esculturas, cômodos escondidos, reflexos, relevo, profundidade, a cada detalhe podemos perceber uma nova relação entre o ser e o espaço, entre o objeto e o conceito, entre a arte e a existência.

Destruir, reconstruir, organizar! A ordem esta no caos! A vida esta na arte!

***

Ao visitar a Pinacoteca do Estado, deslumbrei-me com uma pequena mostra de um artista israelense, acolhido pela Dinamarca, onde reside desde menino, conhecido por Tal R. Não vou entrar em análise profunda de sua obra, mas destaco suas qualidades como o artista capaz de capturar o cotidiano com a mais pura e inocente representação.

Caracterizado por telas grandes, frequentemente pintadas a óleo, sua arte mostra-se livre e solta de qualquer tendência estética e formal. Seus traços quase que inconscientemente recriam a expressão e a alegria das crianças. Sua arte é alegre, infantil. Cores quentes, vibrantes, formas simples, espírito moleque.

Não sei ao todo quantas obras apresentam-se, 10, 20, não muitas, mas em todas encontramos a sensação de ser criança novamente; a alegria e despreocupação em fazer, em viver; a pureza e simplicidade do prazer de desenhar, pintar, rabiscar, de ser e viver arte.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Seja marginal ! Seja herói !

Heresia, não! A maioria pode discordar integralmente do que vou dizer, mas o período mais fértil e representativo da arte brasileira foram os anos 70 (e final dos anos 60). Colocar a arte como questão é fundamental para seu desenvolvimento como forma e conteúdo, conceito e adequação a época. Não podemos deixar mencionar a tão cultuada Semana de 22, o marco inicial do surgimento da arte brasileira, a ruptura com o academismo e as escolas de belas artes. Tarsila, Brecheret, Oswald de Andrade; pinceladas, monumentos, poesia. Os modernistas deram o primeiro passo para que a arte se desenvolvesse no Brasil, a semente inicial na terra do sol; o nacionalismo, nossas cores, nossos hábitos, nossa cultura. O rompimento com o academismo foi fundamental para o parto de nossa arte, mas esse que é o período mais sublime da arte brasileira não foi tão original assim! Rompemos com um modelo para seguir outro!

Nada se cria tudo se copia, o jargão pode ser relevado, mas não podemos clamar por uma arte exclusivamente brasileira se seguíamos claramente as tendências européias. De Cubismo a Expressionismo, de Lasar a Anita, nossos mais importantes artistas foram estudar na Europa e não há como negar que voltaram com referências. Isso implica dizer que o Modernismo brasileiro, não foi uma manifestação da arte exclusivamente nacional, mas sim a adequação das novas tendências européias.

Apontar os anos 70 como o período mais fértil da arte brasileira implica observar seu amadurecimento. Não que deixamos de copiar tendências mundiais para sermos exclusivos, longe disso, embora, Lygia Clark e Hélio Oiticica revolucionassem na questão da obra como elemento sagrado. Se Duchamp ironizava a instituição museu, mais além, nossos artistas exploravam a interatividade, incitavam a participação do público, pioneiros da verdadeira integração arte-espectador. Se pudermos exigir pioneirismo, não podemos deixar de perceber também, que ainda assim, a arte como conceito não nasceu dos verdes louros dessa terra.

Comparar arte de 22 com dos anos 70 é uma tarefa complexa, não só no contexto histórico-político, mas também na questão “aesthetic”, filosófica e artística. Muitas são as semelhanças, poucas são as divergências. Assim como 22, artistas, musicistas e literários cada um em sua especialidade reuniram-se para fazer arte, não a do rompimento, não a do nacionalismo, mas tão patriota quanto; juntaram-se para dizer sim a liberdade, sim a livre expressão, driblar a censura. Não apuraram nossas cores. Não retrataram o mulato. Esqueceram nossa natureza. Mas sim, como ninguém, abordaram nossa realidade, daqui, única e exclusiva. Se contemplarmos em 22 uma arte revolucionária, devemos ponderar também o fato de que a maioria da elite intelectual brasileira, representada na figura de Tarsila do Amaral, era aristocrata, nunca desafiara o sistema a qual pertencia. Retrataram a pobreza, sim! Nossos negros, sim! Mas a intenção nunca foi de mudança e sim observação para uma arte nacional, o exótico, que rompesse com o padrão de beleza estético personificado no “Belo”, que despertasse o olhar curioso do europeu.

Arte rebelde, arte corajosa, que pela primeira vez desafiou o regime teve início no outro período, por isso, além de mais madura, considero a produção artística dos anos 70 mais importante e significativa. Não podemos julgar nem desmerecer os artistas anteriores, mas é verdade que o espaço e o tempo refletem profundamente na consciência e na produção desses artistas. A arte passa a ser apenas o reflexo de um tempo, o retrato de um espaço, e naquele tempo a constatação da mudança, a afirmação da nossa realidade, de nossos problemas.

Renegar o Estado! Discutir a Arte! Duas correntes expressas em um mesmo período. As bandeiras de Nelson Leirner (Bandeiras), a fome de Carlos Vergara (Arroz e Feijão), o registro de Letícia Parente (Marca Registrada), Ivens Machado e seu consolo (Consolador), Paulo Herkenhoff e sua papinha (Baby Food) e claro, Cildo Meireles (Inserções em Circuitos Ideológicos) “Quem matou Herzog?”, “Yankes! Go to Home”, são exemplos da arte heróica, marginal. Uma arte que não se calou na censura, voz ativa, desafiou a representação política, pediu por paz, berrou por liberdade, mas vociferou na guerra. Exilados e marginais, mas antes de tudo artistas!

Na outra corrente, a arte como questão, seu conceito, a verdadeira integração arte público, Júlio Plaza e Regina Silveira através da técnica, discutindo a teoria (Técnicas de Papel), os sabores e aromas de Lygia Pape (Roda dos Prazeres), Walterico Calda na ponta dos sapatos (A emoção estética) e o consultório de emoções da arte terapia de Lygia Clark (Consultórios), destaque pela interação máxima do público, da exploração de sentidos e da arte como prática. A desmistificação da arte sagrada, intocável, apreciável. A livre-expressão da arte como objeto da vida, como parte do cotidiano. Arte do homem, a fusão essencial da arte com o espectador, interação ímpar entre o ser e o conceito.

“Anos 70: a arte como questão” destaque no Instituto Tomie Ohtake, ilumina e reconhece um dos períodos mais importantes e significativos da arte brasileira. Arte ativismo! Arte terapia! Seja marginal! Seja herói!

As três mulheres

“Que vontade de por a mão meu Deus!”. Na espontâ- nea colocação de uma mulher, de meia idade, apa- rentemente; com cabelos longos e cacheados, cor de palha; olhos grandes, repleto de espanto, encantamento e desejo, fixos sobre um circulo vermelho, iluminado em uma parede branca, é que começamos a falar de Anish Kapoor.

Anish Kapoor é hoje um dos grandes nomes da arte contemporânea. Nascido em Bombaim, na Índia, e radicado em Londres desde 1972, Kapoor pela primeira vez, em “Ancension”, destaque no Centro Cultural Banco do Brasil, apresenta uma individual no país.

Seu trabalho é caracterizado por obras grandes, monumentais, de complexos acabamentos, mas o que mais marca sua personalidade é a forma sensorial de arte que extrapola os limites do objeto e mistura-se de forma intrínseca com a sensibilidade do espectador. Há artistas que buscam interação, Lygia Clark e Hélio Oiticica são os maiores representantes dessa metodologia, de uma arte conjunta, da desmistificação do sagrado, da obra onipotente e intocável, mas a interação que propõem, querendo ou não, ainda depende do interesse do público em interagir, entrar, mexer, sentir, Kapoor consegue em sua obra uma interação diferente, não voluntária, mas imposta, é como se fosse um totalitarismo sensorial, querendo ou não, o espectador a se deparar com sua arte, dialoga com ela devido aos emaranhados de sensações e percepções que ela libera.

O mais interessante de ir a uma exposição de Anish é experimentar não só as obras e o que têm a oferecer no campo semiótico, mas é também observar as reações involuntárias de surpresa e encantamento diante a arte. A mulher descrita no inicio foi advertida pelo segurança ameaçar botar a mão em uma de suas obras, sem título, mas que sensorialmente refletia as pessoas de cabeça para baixo, as fazendo perder a noção de profundidade.

No mesmo andar em que se encontrava essa mulher, está localizada a inédita, “Divisão”, outro destaque da exposição. “Divisão” é uma obra arduamente trabalhada, é complexa, detalhada e perfeccionista por si só. Consta de uma enorme sala inteira talhada em cera vermelha com um pilar branco no meio evidenciando um ato essencial e necessário á sobrevivência do homem, mas de difícil concessão, o ato de dividir. O pilar funciona como uma tentativa de dividir a sala quebrando a resistência da cera, que inexoravelmente através de suas cinco toneladas, propõe o atrito e impede a locomoção do pilar.

Perto dessa obra passava uma senhora bem arrumada, de cabelos arqueados, tingido de castanhos com reflexos de luzes, estava modestamente maquiada, e vestia um terno cinza com um chalé de onçinha contrastando ao redor do pescoço. Andava silenciosamente indo de encontro a “Espelho Duplo”; outra obra com brilhante trabalho de polimento, dispondo dois pratos enormes de aço inox, frente a frente, refletindo o espectador de diversas maneiras, um jogo ótico de visualização do homem de pé e de ponta cabeça, causando certa irritação no olhar, uma sensação de estranhamento as formas; mas voltando à senhora, como dizia, caminhava sobre o silêncio absoluto indo de encontro a “Espelho Duplo”, tudo normal, até o momento em que parou diante de uma parede branca esperando que a arte nascesse. Era evidente que não havia nada ali, mas em se tratando de Kapoor não podemos duvidar de nada, Anish como poucos conseguem criar arte onde não há aparentemente nada. Naquela parede do museu realmente não havia nada, mas ao subir um andar deparamos com a sala “Quando estou grávido”. Não vou entrar em detalhes para não influenciar nem incitar a percepção do olhar, mas é incrível como em uma sala branca por natureza a arte nasce para nós. Minha mãe, a terceira mulher, que embora goste de arte não acompanhou meu gosto por arte contemporânea ficou “boquiaberta”, em uma expressão de perplexidade e deslumbramento com a obra.

“Quando estou grávido” apresenta toda a capacidade da arte de Kapoor, monumental, sensível e ilusória, a instalação dialoga, conversa, filosofa e confunde. Após algum tempo percebemos a genialidade do mestre, podemos esperar de tudo, Kapoor sempre achara uma maneira de nos surpreender, mexer com nossos sentidos; não falo só da enorme estrutura de bronze, sem titulo, que em forma de concha, surpreende-nos pelo paradoxo entre a solidez e a leveza, entre o grande e o pequeno (vale lembrar que é uma estrutura de 4,5m equilibrada em um suporte de 10 cm); não falo só de “Pillar” uma forma cilíndrica que ao adrentarmos perdemos a percepção espacial, é como se estivéssemos em outra dimensão, o “enauseamento” (em um silogismo roseano) do olhar até que o comodismo e a letargia acostume-o para nova realidade. Quando falo de Kapoor só há uma única certeza: não podemos confiar no olhar, a percepção está além do consciente, está além no imaginário, além dos sentidos, a arte nasce, brota, surge e ressurge e a percepção é individual, única, espontânea, instantânea, não a copie, não a duplique, não há formas, ela vem, se mostra e vai embora. Kapoor pode até vir a não ser lembrado em épocas futuras, mas tem mérito de conseguir em sua arte, como uma fotografia, capturar, congelar por um segundo que seja a percepção intrínseca a nós. Freud explica! Kapoor incita! E as três mulheres...

Sob a sombra da sobrancelha

Em 1914, Monteiro Lobato então crítico de arte, debi- litado em sua visão, pela sombra de sua monocelha, longa, comprida, e grossa, foi incapaz de perceber os caminhos que a arte seguia, deixando para trás o conservadorismo acadêmico para explorar novas formas, novas linguagens, novas técnicas. Naquele ano, Monteiro, exímio escritor, contador de estórias, criador de personagens inesquecíveis na infância de muitos, Jeca Tatu, Dona Benta, Emília, O sítio do pica-pau amarelo e tantos outros, cometeu um crime. Assassinou uma artista. Anita Malfatti. Sua arma foi o papel, seus petardos as palavras, seu tiro uma crítica. Desde então, Anita nunca mais se recuperou, nunca mais foi a mesma. A crítica feroz, insensível do “sobrancelha” amputou a glória de Malfatti, uma das primeiras artistas mulheres e modernistas do Brasil, mas, simultaneamente, protagonizou uma manobra radical nos rumos que a arte seguia.

A exposição Manobras Radicais, em destaque no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no centro de São Paulo, nos mostra justamente os caminhos percorridos pela arte pós Anita. A exposição só de artistas mulheres tenta, através da arte moderna e contemporânea, discutir as relações não democráticas da arte brasileira, quebrando os paradigmas e valores tradicionais, teóricos e acadêmicos que na época permearam a crítica de Monteiro.

A primeira obra que se destaca chama-se “A Negra” de Carmela Gross; trata-se de uma escultura, feita de uma estrutura de ferro coniforme coberta por um tule preto. Esteticamente parece uma grande árvore de natal, provavelmente não estaria no centro de sua sala de estar. Daí vem a pergunta: isso é arte? Respondo, retrucando com outra pergunta. E por que não seria? Esse foi o destino da arte, ela, ainda bem, deixou de ser figurativa ao extremo, retratar somente a realidade como a vemos, ou as propagandas de instituições clericais e políticas. Passou a ser movimento de questionamento, de re-significação, do desconhecido, de mistificar um sistema sígnico, simbológico, icônico, indicial, passou a explorar novos suportes, ampliou seus horizontes, suas técnicas, seus conceitos. Começou a discutir, filosofar e, sobretudo fazer o receptor, o público, você e eu, a pensarmos. “A Negra”, de Carmela Gross, retrata a raça fazendo um contraponto aos valores aristocráticos de representação do negro, mas disso eu falo depois, ainda não chegou o momento.

Não sei quantas obras se dispersam pelos andares do prédio, mas em cada uma percebemos não só como foi importante a visão reacionária de Monteiro que desencadeou, como contrapeso, a semana de 22, como também, sentimos o verdadeiro valor feminino, a importância das mulheres, na história do Brasil e de sua arte. Percebemos como temos grandes artistas, embora que algumas desconhecidas e desvalorizadas, seus trabalho revelam a essência de como a arte se apresenta hoje. Entre Anita e Tarsila, as mais famosas, destacam-se também Cristina Salgado ao retratar a criança que há em cada homem em “Homem - Bebê”; Adriana Varejão com suas fissuras, feridas, dignas de Hitchcock na tela “Parede com incisões à la Fontana”; Ana Vitória Mussi e sua enxurrada de filmes fotográficos em “Por um fio”; sua xará Anna Maria Maiolino, e sua fotografia também intitulada de “Por um fio”; a carioca Beatriz Milhazes com suas cores vibrantes e formas sinuosas; Maria Martins na escultura “O impossível” que aborda a relação masculino-feminino e Letícia Parente em sua vídeomontegem “Marca Registrada”, retratando literalmente na pele a industrialização de nosso país.

Antes que me esqueça, voltemos “A Negra”, não aquela de Carmela Gross que citei no começo do texto. A negra de que falo agora é a prima famosa, de Tarsila do Amaral. Bem, não é “A Negra”, é um estudo, mas nem por isso menos valioso. Tarsila, assim como Anita foi umas das precursoras do movimento modernista no Brasil. Vinda de uma família aristocrática, de posses e fazendas, Tarsila estudou na Europa, onde teve contato com as estéticas modernas. “A Negra” de Tarsila foi pintada nesse período, inspirada na busca pelo exótico, na fuga dos padrões de beleza impostos nas artes pelas madonas e vênus, a obra resgata um ser primitivo do homem, retrata sua ligação com a terra, relembra sua origem. O que Carmela Gross quis questionar em sua representação de “A Negra” é como uma aristocrata poderia retratar os negros, qual seria a visão de negro de Tarsila? Qual sua ligação com a terra? Qual é a sua origem? Como uma herdeira de inúmeras fazendas, lugares onde, em nosso país, por séculos, os negros foram explorados e escravizados, perceberia e conceberia o negro em sua essência? Bom, aristocrata ou não, tanto Tarsila como Carmela deixam os registros de um Brasil desigual e elitista, mas paralelamente diversificado, colorido e democrático, rico em cultura, folclore e opiniões, mesmo que ofuscadas pelas sombras da sobrancelha.